quarta-feira, 31 de maio de 2017

Pusilânimes?

Há gente cuja fisionomia muda por completo ao vê-las experimentar um sentimento vivaz, próximo do afecto. Talvez a indiferença se tenha tornado no seu território há tanto tempo e seja então um instante de emoção transparente que faz com que o seu olhar liquido não consiga encontrar as palavras que rasguem o silêncio e puxem o fio à conversa circunstancial. Ou então estão apenas a vibrar por questões rudes e pesadas de revoluções intimas em vez de se empanturrarem de incertezas. Ou então é apenas um talento natural que têm de confrontar os outros com a verdadeira medida da vida, esse talento miraculoso que as liberta das pusilanimidades que escomoteiam uma parte de si próprias. 
Não sei. Mas aprecio.

E tu, porque ainda insistes nisto dos blogs?

A cada périplo ainda enfrento dois sentimentos absolutamente complementares: a felicidade e a tristeza retardada. Numa primeira investida, impulsiva, sente-se desde logo uma vontade abrupta de extorquir o máximo de prazer da leitura de cada recanto, como se estivesse para se dar, a todo o momento, a sua delirante destruição. Lê-se tão depressa que parece que se fundem uns nos outros e não nos detemos para destrinçar o emaranhado de histórias que se vai formando a partir dos diferentes blogs. Acaba-se sempre por entrar neles, nuns coroando todas as cenas de amor e noutros abafando todas as tragédias. Às vezes acontece ao contrário.
Há gente que sabe desenhar e aplicar tinta e que consegue fazer dela o que quer. Tem olhos para captar e pintar as coisas simples e belas da vida: a luz matinal, a superfície de um espelho, o som de uma música erudita, a casca de uma maçã, a pele arrepiada, os olhos cintilantes, os ombros brancos e esculturais, peitos proeminentes, espíritos em ebulição permanente.
Outros há que, às vezes, a nuvem vai-se dispersando, deixando um ambiente consideravelmente desanuviado, mas dai a nada ali está ela, outra vez, espessa e cerrada à sua volta a relembrar-lhes que os laços que os ligam ao mundo são extremamente frágeis. E enquanto lá fora não pára de chover, a única coisa que os impede de tentar desaparecer uma segunda vez é o medo de falhar novamente. Até que um dia, assim sem motivo nenhum, lá acordam a sentir-se bem.
Como são admiráveis as pessoas dos blogs! Mas isto, como se sabe, é só isso mesmo - blogs. O mundo há-de ser aquilo que se vê daquela janela para fora.

terça-feira, 30 de maio de 2017

Registo de propriedade

Que odeia mais a mulher? - O ferro dizia ao iman o seguinte: odeio-te porque tu atrais, mas não és suficientemente forte para me ligar a ti.

__Friedrich Nietzsche In Civilização e Decadência

                                                                                                                                   Gerhard Riebicke

Ninguém atrai ninguém, ninguém se atrai a si mesmo, homens e mulheres atraem-se entre si, moldados pela sobrevivência.

__Impontual, debaixo de um terrível sol de trovada de Maio.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Estava aqui hesitante entre a Serenata nº 13 em Sol maior para cordas e a Serenata Melancólica em Si menor para violino e orquestra...

O problema é continuar haver pessoas que acham que temos obrigação de ter consciência de tudo o que se passa em nosso redor. Esquecem-se, entretanto, que isso seria o mesmo que ouvir o dia nascer, a relva a crescer, a noite a cair, a lua a passar ou mesmo um coração distante a palpitar. E não. Não podemos estar acordados tanto tempo. Eu pelo menos não posso.

Acabei por optar por Schubert ao piano de Lang Lang, que dize(i)s?

Um domingo, uma chuva, uma cigarrilha...

As lágrimas são uma coisa misteriosa. A minha avó dizia-me antigamente que temos uns canais lacrimais para lavar os olhos que são máquinas frágeis e delicadas, mas ninguém sabe porque é que esses mesmos canais se põem a funcionar sozinhos quando estamos tristes. E não adianta perguntarmo-nos qual é a relação entre a tristeza e a água salgada. Embora valha a pena viajarmos pelos meandros da memória, vermos a maneira como a podemos enriquecer ou apagar, dar lugar à amnésia necessária para seguir caminho, não em direcção ao amanhã que esse nunca chega, mas ao dia seguinte.

sábado, 27 de maio de 2017

Escala cinza

Ao fundo, o mar está cinzento e liso como a curva das nuvens da mesma cor. Sento-me a observar as ondas que deixam escorregar, lentamente, as suas línguas estreitas ao longo do areal. Uma luz, ténue, de fim de manhã escapa sobre as densas nuvens negras, dardejando sobre a superfície da água, fazendo com que as ondas cintilem por uns instantes até que lambem as pedras e se tornam cada vez mais escuras, fervilhando pela areia pálida e saibrosa, desaparecendo.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Atalhos de vida

Casamento
uma série interminável de divórcios

Teresa Borges do Canto, no Atalhos de Campo

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Ou, silogisticamente, a união dialéctica pode comprovar que o contrário também é uma verdade sustentável?

terça-feira, 23 de maio de 2017

Mestrados e doutoramentos

O problema é que as pessoas, abnegadas que são, julgam que o amor se aprende da mesma forma que aprenderam o teorema de Pitágoras, a teoria da relatividade, as leis da termodinâmica e da conservação das massas, os movimentos da bolsa de valores e outras teorias sobre o estado do mundo. E por isso vivem intrigadas por esse rio grande - que é o amor - que parece inundar o universo, mas que não as irriga a elas. 

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Défice excessivo

Pousar o olhar sobre o outro, vê-lo tal como ele é e dar. Dar amor. Dar, recebê-lo. 
Dar, receber, dar, receber. Um vaivém muito mais perigoso que o acto carnal. Débito-crédito, crédito-débito, débito-crédito. Os números alinhavam-se ameaçadores. A divida amorosa é sempre exorbitante. 

sábado, 20 de maio de 2017

Poeta azul


O silêncio e os nossos corpos nus, um encostado ao outro, eis o nosso domínio, o nosso trono, o nosso reino de turquesa encantado.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Turba

O jornalismo mal-intencionado é hoje uma espécie de turba descontrolada, engrossando e espalhando-se, adquirindo força à medida que se vai disseminando. Apesar de ser impossível controlar por completo qualquer turba, todas precisam de ter o seu cabecilha. Quando o jornalismo mal-intencionado começa a espalhar-se com tal ousadia que chega ao ponto de manchar integridades sem olhar a quem nem a meios, os que são responsáveis pela sua propagação só podem ser pessoas que ocupam cargos de chefia. Que outra espécie de gente agiria desta maneira?
E fico a pensar como é que há directores a fazer, a propagar e a gerir jornalismo desta natureza. Se chegarão ao fim do dia satisfeitos, realizados com o seu trabalho? Se o mostrarão às esposas, aos filhos, às filhas universitárias com orgulho? 

terça-feira, 16 de maio de 2017

Música de outro Mundo para outro Mundo

Compartilha e deixa que a própria natureza da música faça o apelo eloquente à fraternidade universal.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Carmen

A sua dor não pára de aumentar ainda mais por se sentir tão sozinha num arquipélago lento onde tudo incita a partilhar o inefável, a respirar em conjunto. Como pode gritar o seu desgosto no meio de uma tal beleza, de uma tal abundância de flores? As Hortênsias, as Camélias, os Patalugos onde tudo é alegria, as cores saturadas das lagoas, todas aquelas Azáleas lavadas pelo sol falam de identidades, de âmagos recuperados, de horizontes disponíveis, enquanto ela sofre daquela solidão que asfixia os incompreendidos.  Perdida no paraíso da relutância, o matraquear surdo do absoluto chama-a a um encontro não estagnado do amor tecido com verdades perigosas, cheio de risos inacessíveis, a um infinito que desaparecera, a um sentimento desencorajado, ao escândalo da mediocridade.

Guronsan

"O dia é uma dádiva. Se nos der chuva, aproveitemo-la"

__ Salvador Sobral

sexta-feira, 12 de maio de 2017

E tu, qual é a tua versão favorita do Avé Maria ?

Enquanto fumo um Cohiba Behike na varanda entra-me uma música de fundo, alta, vinda algures da janela entreaberta da vizinha, uma fanática de Elïna Garanca, que hoje resolvera brindar-me com “Avé Maria" de Mascagni. Levanto-me e tomo um café, feito esta manhã, frio. Observo-a agora, tal como o café, mais a frio, mais distante.
Semicerrou os olhos, reclinou a cabeça ligeiramente para trás e deixou que no interior do seu corpo forças cegas se interceptassem, se rejeitassem e estrebuchassem até se incendiarem. Deliciosos horrores, grosserias de alcova jorraram então da sua boca como pequenas escórias da alma, cinzas incandescentes expulsas no momento da erupção. A noite, amante obediente, delicia-se agora com aquele ventre acetinado de mulher semi-adormecida.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Perfidus

A lascívia pode ser uma espécie de veneno que corroí a vida. Contudo, a partir do momento em que se compreende que essa mesma vida, pela sua natureza, não dura para sempre e não pode esperar, o veneno passa de uma tentação perigosa à promessa do renascer. Porque não, pois, erguer o copo e brindar? Eis o pensamento pérfido.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Outras vidas

Se eu fosse o Papa Francisco, e viesse à Cova da Iria, faria a minha humilde entrada nessa aldeia, desconhecido, e quase sem ser visto. Todavia, quando os peregrinos que se dizem na sua confissão religiosa, me começassem a conhecer, ficariam mais agradados com a minha presença do que o contrário, mesmo quando lhes dissesse que não era portador da reserva de carácter necessária para sossegar as suas consciências de puro sangue que, por esta altura, vivem agitados, bem como para proporcionar um apoio suplementar à raça mista que entrará na missa de manhã e circundará de joelhos a capela das aparições pela tarde. Mas não sou. E ainda bem.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Leituras

Quando me acompanhou à porta de saída, tive oportunidade de observar a sua figura. Possuía, obviamente, todos os encantos da juventude: leveza, esplendor e energia, mas faltava-lhe a sabedoria, a pátina, o saboroso trato dos quarentas. Acenei com a cabeça. É possível que não tenha conseguido ler-me, nem nos olhos nem no sorriso. Eu li-a de baixo a cima.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Bem dizia Cioran

A França, país que outrora nos mostrou o simbolismo, o impressionismo, o liberalismo, o estilo, os salões, os prazeres da inteligência, a razão, as pequenas perfeições e que sempre serviu como centro irradiador de tendências para o resto da Europa, hoje deu mais uma profícua instrução ao Mundo: - aprendam a ser infelizes, gentilmente.

domingo, 7 de maio de 2017

Bolachas de manteiga

Quando na porta à minha frente soava aquela leve pancada de dois toques e me deparava com uma mulher bem composta, de cabelo escuro, testa ampla e sensata, olhos que me aqueciam e um sorriso que no meio da noite era em si mesmo uma luz sobre a minha alma fruidora, que me perguntava numa voz musical, com uma expressão de doçura nas feições e abanando a porta atrás de si com uma das mãos:
- Sabes guardar um segredo?
- Como um túmulo! dizia eu com fervor.
- Acabei de fazer umas bolachas de manteiga!
...

- Não durmas tarde.

- Obrigado, mãe.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Onde está a verdadeira vida?

É esta a pergunta de um homem que teima em rejeitar as emoções aguareladas. O amor, longe de ser uma recriação, tem sido sempre o único pretexto válido da sua vivência, um dos raros ópios capazes de atenuar um insistente e alegre pessimismo. Apenas a irrevogável tendência para o sexo oposto o consola verdadeiramente. Prisioneiro dessa alegria oficial, durante longo tempo a geografia das suas necessidades, como se esse desejo essencial, juntamente com os seus ressentimentos, fossem os grandes mestres do amadurecimento.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Civilização do espectáculo

Quem sou eu, bem pesadas todas as coisas, para me armar em juiz impassível de uma civilização tão rica como a nossa? Acabaria certamente por ficar afogado em lugares-comuns. Na verdade, bem vistas as coisas, todas as civilizações assentam na ideia de que, de um lado, não há mais que uma horda vagamente humana e, do outro, os iluminados -"nós". O modo como se policia a fronteira entre civilizados e bárbaros pode diferir, mas todos a policiam, desde o Alasca à Tasmânia. No entanto há algo que distingue uma civilização de todas as outras que é, sem dúvida, a colossal e arrogante desumanidade com que policia essa fronteira.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Baleia azul

Fui almoçar à Galiza. Um daqueles bifes que vem naquela caçarola minúscula a transbordar de molho, e que se comem com o talheres em posição vertical. O bife era tão mal passado que ainda falei com a vaca. Claro que esparrinhou. Não havia de esparrinhar! Salpicou-me a gravata toda. Hoje pus gravata. No Porto também se come mal. Ou melhor, opta-se mal. Mas dizia eu, na Galiza as pessoas sentam-se na mesa dos outros como se não estivesse ali ninguém. Tocou-me uma mãe e um filho. A mãe não era velha. O filho já não era novo. Sorri-lhes. Comeram em silêncio. O filho espreitava o telefone inteligente a cada vibração. Desta última vez, a luz acendeu-se de um azul muito forte, era uma mensagem, não pude deixar de reparar: "eu amo-te e quero ser tua eternamente. Ass: Paulinha". O rapaz sorriu. A mãe deu um último travo no copo da água e disse: "as mulheres são serpentes - o que tens de fazer é despreza-las. E depois quando se sentirem desprezadas, amá-las apaixonadamente. Assim devem ser tratadas as mulheres. Não existe outra maneira, meu filho". Comeram rápido. Eu fiquei ali a falar com a vaca.
Agora, enquanto a gravata seca, sou capaz de ir tomar um gin, tónico, com muito limão.

terça-feira, 2 de maio de 2017

Fumus boni iuris

Juridicamente, a partir de hoje os animais deixam de ser considerados coisas. Agora, é deixar de tratar as pessoas como animais.